A festeira do baixo Madeira
Pode
até existir, mas, é difícil de encontrar, uma pessoa que seja mais procurada
pelos turistas que visitam São Carlos do Jamari do que dona Lóia. Nascida no
município amazonense de Humaitá, dona Lóia veio morar na Boca do Jamari quando
estava apenas com 13 anos de idade. “Meu pai veio em busca de trabalho
nos seringais e passamos a morar em São Carlos desde então”. Induzidos
pela fama, o turista quando chega a São Carlos vai direto a residência da dona
Lóia atrás de degustar a comida preparada por ela. “Entra menino, tem
arroz, macarrão, galinha caipira, peixe cozido, peixe frito e assado, te serve
aí” é assim que ela recebe. Por muito tempo a visita era por outro
motivo, pois em sua residência, funcionava o “Clube da dona Lóia” onde o
‘mela coxa’ rolava a noite toda nos finais de semana. “Era no tempo da
vitrola com musicas de Valdick, Roberto Carlos, Nonato do Cavaquinho, Alcione e
tantos outros cantores”. No meio da conversa seu filho Francisco dá o
seu pitaco a respeito dos problemas que todos os ribeirinhos estão vivendo em
virtude da enchente do rio Madeira.
Só
mesmo acompanhando a entrevista que segue, para saber mais sobre o assunto.
Entrevista
Zk –
Vamos começar pelo seu nome completo, onde nasceu, idade etc?
Lóia –
Meu nome é Lóia de Oliveira Costa estou com 77 anos já que nasci no dia 5 de
abril de 1937 em Humaitá (AM), sou da família Santiago, até meus 13 anos vivi
lá e depois meu pai veio para São Carlos do Jamari. Acontece que meu pai
Raimundo José da Costa era seringueiro e veio em busca de trabalho nos
seringais do Jamari e em consequência, montou casa em São Carlos.
Zk – E
sua mãe?
Lóia –
Minha mãe Graziela Santiago de Oliveira ficava com a gente em São Carlos, de
vez em quando a gente ia pro seringal, passava algumas semanas. Não cortei
seringa, mas, aprendi a defumar o leite pra fazer as pelas de borracha. As
vezes fico lembrando, ai meu Deus tanta coisa que já fiz na minha vida.
Zk –
Vocês cortavam seringa pra quem?
Lóia –
Na realidade, meu pai não tinha um patrão, ele vendia a produção de borracha
para quem pagasse mais, lembro que o seu João Sena era quem mais comprava a
nossa borracha. Naquele tempo São Carlos era muito movimentado, lá encostavam
aqueles navios grandes que traziam de tudo e levavam em seus porões a produção
de borracha dos seringais do Jamari e Candeias. Esses navios passavam vários
dias no porto onde existia um grande armazém, onde desembarcavam os mantimentos
que depois eram levados para os seringais da região. Agora não tem mais
seringa, não tem mais nada, tudo é Vila.
Zk –
Nos dias de hoje a senhora e seus filhos têm plantação na beira do rio Madeira.
São Carlos tem terra firme?
Lóia –
Em São Carlos mesmo não temos não, temos um terreno dentro do Jamari que era do
meu sogro, finado Tobias e assim mesmo, até hoje não fizeram o inventário e em
consequência, ninguém se interessa por cuidar, mora muita gente lá. Já falei
pros meus filhos: Vocês não vão precisar dessa terra, não vão morar, não vão
fazer nada, deixa pra quem precisa. São dois terrenos que temos no Jamari o
Fortaleza e o Paca.
Zk –
Quantos filhos a senhora teve?
Lóia –
Quatro. Almério, Airton, Francisco e
Alessandra que me deram um bocado de netos.
Zk –
Hoje estamos vivendo uma enchente sem precedentes no Rio Madeira, a senhora que
nasceu e se criou na beira desse rio, já tinha visto coisa igual?
Lóia –
Nunca. Pelo menos ali em São Carlos nunca vi alagar como está agora. Antes a
água chegava até a escada da igreja, mas, todo mundo ficava nas suas casas.
Agora essa enchente alagou tudo, ninguém tem mais terra, não tem casa, não tem
escola, não tem nada. São Carlos foi pro fundo, acabou! Tem vez que choro
pensando o que será da gente após essa enchente.
Zk – E
o problema do desbarrancamento?
Lóia –
Sempre teve o desbarrancamento, porém era devagar. Depois que as usinas
chegaram a vila da frente de São Carlos já mudou quatro vezes. Até o “Xanas”
Bar foi embora pro fundo do rio depois das usinas. Pode até não ser culpa da
construção das usinas, mas, que o problema se gravou após elas chegarem, se
agravou sim!
Zk –
Deixando a enchente de lado. A senhora era frequentadora das festas?
Lóia –
Eu tinha era um clube. Por muito tempo lá em casa era o ponto de encontro dos
dançarinos de São Carlos e região, todo final de semana tinha festa, era na
base do disco de vitrola, depois veio o CD, tocava de tudo. De Valdick Soriano
a Roberto Carlos, de Ângela Maria a Alcione sem esquecer o forró nordestino com
Luiz Gonzaga, Três do Nordeste, Trio Nordestino, Elba Ramalho e lambada do
Nonato do Cavaquinho e Beto Barbosa. Dona Lóia tem disco tal? Tem não! E na
outra semana ele chegava com o disco e a festa ia até de manhã. Graças a Deus
nunca aconteceu briga, quando alguém queria se exaltar eu chamava e ameaçava,
se você brigar nunca mais vai entrar aqui e a turma me obedecia. Vamos pro
forró da Dona Lóia, a pé, de bicicleta e de canoa, a festa não parava mesmo
quando tinha enchente que nunca chegou na minha casa como essa de agora.
Zk –
Qual sua religião?
Lóia –
Sou católica. O padre Chiquinho foi quem batizou todos meus filhos naquela
igrejinha de Nossa Senhora Aparecida. Foi Dom João Batista que autorizou a
construção da minha casa num terreno que pertencia a igreja. Primeiro ele
sugeriu no local onde estão aquelas duas mangueiras pertinho da igreja e eu não
quis, para não derrubar as fruteiras, então ele me mandou escolher o terreno.
Depois que fiz minha casa, muita gente de Porto Velho já quis comprar e eu não
vendi. Se eu soubesse que ia dar essa enchente teria vendido.
Zk – A
senhora estava contando que veio para Porto Velho passar uns dias e deixou toda
suas coisas em São Carlos e quando quis voltar a enchente tinha chegado. Foi
isso mesmo?
Lóia –
É! Vim pra cá e os meninos não vinham me buscar, quando chegaram eu disse,
vamos lá em casa, quero juntar minhas coisas. Só ventilador tenho quatro tudo
novo. Minha geladeira não está nem com um ano de uso, frisa tá tudo lá, diz o
Francisco que treparam, mas, não sei se a água alcançou, espero que não.
Zk –
Agora vamos bater um papo com o Francisco filho mais velho da dona Lóia. Vocês
tem plantação lá em São Carlos?
Francisco
– Minha plantação tinha 4 Mil pés de roça, 50 pés de banana tudo soltando
cacho, cupuaçu florando, pé de laranja, limão, jaqueira, abacateiro, fiz um
sitiozinho.
Zk –
Quando você diz pé de roça, é o que?
Francisco
– Macaxeira e mandioca. Ia começar a fazer farinha agora em abril. Nossa
produção de farinha é mais pro consumo nosso, como não sei fazer, a produção
seria de meia. Quer dizer, metade pro dono da roça e metade pra quem faz a
farinha, é assim.
Zk –
Quando você veio de lá como estava a situação da cheia?
Francisco
– Quando vim já tava tudo debaixo d’água, hoje pra achar minha casa só se for
de malhadeira porque tá no fundo. Tô com 54 anos de idade, sempre morando em
São Calos, jamais vi uma cheia dessas.
Zk –
Como será o futuro de São Carlos?
Francisco
– Pra ser sincero, São Carlos não tem mais condições pra gente morar. Isso
porque depois da enchente a caição do barranco vai ser maior. Hoje a água do
Madeira é muito suja e com isso, vai ficar no mínimo Um Metro de aterro, as
casas, os colégios e até a usina de energia elétrica vão ficar aterradas. São
Carlos para voltar ao que era, talvez leve dois anos de muito trabalho. Onde a
mamãe mora a água nunca tinha chegado, pra você fazer idéia a quadra de
esportes que fica bem distante da beira do rio, está com um metro d’água.
Zk –
Existe a possibilidade e terra firme pra se construir uma nova São Carlos mais
pra trás?
Francisco
– Para isso acontecer, o governo tem que abrir mão da reserva do Cuniã onde é
terra firme, mas, é reserva e não pode ser utilizada para construir a vila. É
uma faixa de 18 km de terra firme.
Zk –
Na tua opinião as usinas têm a ver com o que está acontecendo no baixo Madeira?
Francisco
– Se realmente tem eu não sei, pode ser. Veja bem, a correnteza do rio Madeira
hoje é de 20 km por hora. O motor que antigamente fazia 5 horas de viagem de
Porto Velho a São Carlos hoje leva apenas 3 horas, tô falando de barco recreio.
Temos que ver que eles não tamparam só o rio, nós sabemos que eles fizeram um
lago com 70 metro de profundidade disque que para guardar água pro verão, se
isso não existisse, com certeza não estava tão cheio assim. Nós sabíamos que ia
acontecer a enchente mas, no mês de abril e não agora. Minha casa tem três
metros de altura e hoje ela está totalmente debaixo d’água. Coloca isso aí.
Zk – O
que?
Francisco
– Espero que as autoridades façam alguma coisa pela gente. Se eles estiverem
pensando que só o almoço e o jantarzinho e a merenda que eles estão dando é
suficiente, não é! Se a gente estivesse lá em São Carlos estaríamos comendo nosso
peixe assado, peixe cozido, nos abrigos isso está fazendo falta, porque a
alimentação que eles estão servindo deveria ser diversificada, hoje peixe,
amanhã carne depois galinha. Nós povo ribeirinho, somos acostumados desse
jeito, a maioria do povo ribeirinho hoje vive bem, tem seu ar condicionado, sua
geladeira, sua televisão e se alimenta bem. Até agora estamos morando em
colégios, mas estão falando, que vamos morar debaixo de lona, se isso
acontecer, vou ter que pedir abrigo na casa dos meus parentes. Não vou morar
debaixo de lona. Pra ser sincero nós não estamos tendo um atendimento adequado.
Zk – É
verdade que existe um estudo para construir a nova São Carlos do outro lado do
rio. O que você acha?
Francisco
– Pra quem não é agricultor, o local onde eles querem construir é bom agora,
para a agricultura não serve porque é terra de pasto. É a terra de um
fazendeiro que está pedindo R$ 2 Milhões.
Zk –
Voltando a dona Lóia. Pra encerrar. Qual mensagem a senhora deixa sobre a
enchente do rio Madeira?
Lóia –
Gostaria que as pessoas não desviassem o curso da natureza. O que está
acontecendo tem a ver com a falta de respeito do homem para com as coisas de
Deus!
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