A
guerreira do baixo rio Madeira
No dia internacional da
mulher, vamos homenagear a senhora Angélica Santos Nascimento, uma das vítimas
da enchente do rio Madeira, que aos 93 anos de idade completados no dia 20 de
dezembro passado, conta que jamais viu tamanha catástrofe. “Nasci, fui criada e
vivo há 93 anos na beira do rio Madeira”. Assim como dona Angélica dezenas de
mulheres mães de família estão sofrendo com a falta de respeito que o homem tem
para com a natureza. “Esse rio Madeira é explorado de todas as
maneiras pelos garimpeiros e suas dragas e agora pelas usinas e ainda dizem que
a culpa é da natureza. Só se for a natureza ruim do ser humano”. Criada
pela bisavó, dona Angélica comeu o pão que o diabo amassou na sua infância e
adolescência. “Passei muita necessidade, quantas vezes comi camelão com farinha
d’água! De tanto comer o peixe que chamam ‘lagrimício’, não posso nem ver mais
o bichinho na minha frente”.
Morando na localidade Prosperidade no distrito de São Carlos há muitos
anos, dona Angélica não sabe o que será de suas galinhas e patos. “Já
devem ter morrido afogados”. O gado do seu filho foi levado para a
restinga mas assim mesmo, seis já morreram. “O vizinho já perdeu 60 cabeças
de boi”.
O Dia Internacional da
Mulher foi criado em homenagem as mulheres que foram queimadas vivas nos
estados Unidos da América.
No dia Internacional da
Mulher em Porto Velho – Rondônia as mulheres ribeirinhas, amargam os prejuízos,
causados pela enchente do rio Madeira,
ENTREVISTA
Zk – Vamos começar pela sua
apresentação, onde nasceu e se criou?
Angélica Santos – Nasci em
Autazes (AM) no dia 20 de dezembro de 1920. Quando estava completando dois anos
de idade, vim morar na localidade de Três Casas que era da família Lobo (João
Lobo). Vivi em companhia da minha bisavó até os 13 anos de idade, quando ela
morreu.
Zk – Fale sobre sua infância
na beira do rio?
Angélica Santos – Infância!
Eu não tinha irmão, não tinha irmã, não tinha pai, não tinha mãe, não tinha
nada. Tinha uma tia que também era minha madrinha e quando minha bisavó morreu
fiquei na companhia da minha prima.
Zk – Fale sobre a história
da sua família, mãe, pai. O que aconteceu?
Angélica Santos – Minha mãe
morreu afogada no encontro dos rios Preto e Madeirinha onde tinha uma passagem
muito perigosa e a canoa alagou, meu pai mais o único irmão que tive se
salvaram. Minha mãe chamava-se Maria de Nazaré do Nascimento e meu pai Manoel
Venâncio dos Santos.
Zk – É verdade que a senhora
passou muita necessidade quando criança e adolescente?
Angélica Santos – Cheguei a
passar fome, cansei de ir pra beira do rio pescar uns peixes que chamam de
“Lagrimicio” que hoje em dia não quero nem ver. Comi muito camaleão assado com
farinha d’água, dei duro na roça para ajudar no sustento da família, não foi
fácil não minha vida de criança e adolescente.
Zk – A senhora frequentava
as festas que são famosas no beiradão?
Angélica Santos – Não
gostava de festa e em consequência, não fui namoradeira como era costume das
moças da época. Minha prima com quem passei a morar depois da morte da bisa,
era muito rígida, eu só saía de casa se fosse com ela, o único local que ela me
deixava ir sozinha era para a igreja.
Zk – E o casamento?
Angélica Santos – Comecei a
namorar com um rapaz, mas, a mãe dele era muito metida, só queria ser o que a
“folhinha não marcava”, terminei o namoro. Então fui namorar o Antônio Joaquim
Esteves, no dia que fez dois anos de namoro nos casamos, era o ano de 1937 e eu
estava com 16 anos. Ele morreu em 1997 foram 61 anos de convivência. Tivemos 18
filhos dos quais apenas 15 estão vivos hoje, São mais de 100 netos e bisnetos,
tem até tataraneto.
Zk – Depois de casada foi
morar aonde?
Angélica Santos – Aí viemos
morar em Sobral que era praticamente em frente a São Carlos, já tinha três
filhos nascidos em Humaitá.
Zk – Por que sua família se
mudou do Sobral?
Angélica Santos – Porque
caiu tudo, a correnteza do rio Madeira desbarrancou tudo, Isso foi há mais de
20 anos. Eu estava fazendo café quando ouvi a terra “estralando”, olhei tava
quebrando, chamei minha filha e um sobrinho era só quem estava em casa, os
outros já estavam montando a nova casa em Prosperidade. No outro dia fomos
embora e o sobral foi quase toda pro fundo do rio Madeira.
Zk – Pelo jeito sua vida foi
e é vivida na beira de rio. Tem alguma estória de boto essas coisas que falam?
Angélica Santos – Que
estória de boto! Sempre tomei banho de rio e nunca o boto veio me aperrear,
esse negócio de filho de boto é conversa pra boi dormir. O que vi foi muita onça.
Lá em casa a gente criava muito porco e elas vinhas perseguir os bichos no
chiqueiro. Cansei de ir caçar onça com a doze em punho. Vou lhe contar uma
história que o senhor vai achar muita graça.
Zk – Conte?
Angélica Santos –Eu, minha
vizinha e um dos meus filhos, “disque” fomos apanhar cacau, tinha que
atravessar o rio, eu ia na proa da canoa e quando chegamos subi o barrancoàs
pressas, quando levantei a cabeça dei de cara com uma onça pintada sentada me
olhando ou me esperando. Dei um grito e sai rebolando barranco abaixo era eu
prum lado e a onça pro outro.
Zk – Se Sobral foi pra
debaixo d’água, você se mudaram pra onde?
Angélica Santos – Fomos
morar em Prosperidade que é do lado esquerdo do rio Madeira de quem baixa e
pertence ao distrito de São Calos. É uma localidade que existe há muitos anos,
teve vários donos, por último, foi do seu Zé Menezes que deixou para os filhos
e agora são os netos. Acontece que meu compadre e a mãe dele, ‘pisicava’ todo
tempo pra gente ir morar em Prosperidade, tomar conta. Meu filho disse que só
ia se ele vendesse uma parte da terra e a proposta foi aceita. Acontece que são
muitos herdeiros e até hoje não foi feito o inventário, já moramos há muitos anos
em Prosperidade e até hoje não conseguimos resolver o problema.
Zk – Quantas famílias moram
e o que vocês têm lá em Prosperidade?
Angélica Santos – Tem as
famílias: Do Chico, Mocinha, Compadre Bacica, Nós, Xaxa, Renato, Comadre Darci,
Coco e a Cristiane. Meu filho tem muito gado lá.
Zk – Sabemos que a senhora
pegou muito menino como parteira. Como foi que a senhora descobriu esse dom?
Angélica Santos – Eu era
nova ainda. Eu sempre dizia que não tinha coragem de fazer parto, até que uma
vizinha que tinha ido pro seringal e quando voltou estava gestante e no mês de
ganhar neném. Eu estava dormindo quando o menino chegou me chamando, fui lá e
ela estava com as dores pra ter a criança, eu nunca tinha feito aquilo, disse,
coragem meu Deus e deu tudo certo. Daí pra frente não parei mais de pegar
menino, perdi até a conta, só sei que muitos me chamam de “Mãe Velha”.
Zk – Tem alguma história de
parto que a senhora não conseguiu fazer?
Angélica Santos – Dos partos
todos, apenas dois não consegui realizar e recomendei que as mulheres viessem
descansar em Porto Velho. Antes, assim que a criança nascia, a gente dava
banho, de uns tempos pra cá, apenas limpamos com pano e colocamos no colo da
mãe para a primeira amamentação. Parei de pegar menino como parteira já faz
tempo, ainda estava com 78 anos.
Zk – Toda localidade do
baixo Madeira tem um festejo. Em Prosperidade vocês festejam qual santo?
Angélica Santos – Nossa
Senhora da Saúde cuja festa acontece nos dias 14 e 15 de agosto. O festejo
começou em Sobral e quando fomos pra Prosperidade levamos pra lá.
Zk – É verdade que a senhora
recebeu uma graça de Nossa Senhora e por isso até hoje oferece almoço para toda
comunidade?
Angélica Santos – É verdade!
Quando tive esse meu filho que sempre me acompanha o Antônio, adoeci de tanto
subir e descer a escada que separava o resto da casa da cozinha. Então fiz a
promessa que se eu ficasse boa, todos os anos até minha morte, daria um almoço
para a comunidade no dia da festa de Nossa Senhora da Saúde. No começo era
galinha caipira e porco, hoje é tanta gente, que matamos um boi para servir no
dia da Santa.
Zk – Por falar em promessa,
tem a história do casamento e a morte do padre Chiquinho. Como foi?
Angélica Santos – Dom João
Batista Costa desde os tempos de Sobral sempre que visitava o beiradão comia lá
em casa. Tem dois filhos meus que são afilhados dele, é a Janice e o Elói. O
padre Chiquinho era outro que ia lá pra casa também.
Zk – E o casamento?
Angélica Santos – Dom João
estava em São Carlos para fazer o casamento da minha filha. Na véspera, ela com
o noivo José Braga foram a São Carlos confessar, quando chegou a noticia do
falecimento do padre Chiquinho. Dom João disse: Va buscar o vestido da noiva
que vou fazer o casamento agora, preciso subir pra Porto Velho, porque o padre
Chiquinho morreu. Aí foi aquele corre, corre, minha filha casando e minha nora
em trabalho de parto. Fui pro casamento da minha filha e sai correndo para
fazer o parto da mulher do meu filho.
Zk – A senhora está em Porto
Velho por causa da enchente do Madeira. O que a senhora tem a dizer a respeito
disso?
Angélica Santos – Olha,
nasci e me criei na beira desse rio Madeira e nunca, em 93 anos, vi uma
enchente dessas. Tô muito triste (emocionadíssima), minhas criações ficaram lá,
nem sei se minhas galinhas e os patos ainda estão vivos, meu jardim, as
plantações de verduras e legumes tá tudo debaixo d’água. Não sou acostumada a
dormir com ar condicionado ou ventilador, lá em casa é tudo natural não faz
calor nem nada. Aqui até a pressão sobre demais!
Zk – Além das galinhas e dos
patos o que vocês criam?
Angélica Santos – Meu filho
tem bastante gado. Não perdeu mais, porque ele levou tudo pra restinga (terra
firme) e lá a onça já comeu seis e outro morreu no transporte, agora nosso
vizinho, perdeu 60 cabeça de gado para a enchente. As casas dos meus filhos cujo piso é de
cerâmica, com certeza já estragou tudo, já minha casa, que é de madeira fica mais
fácil de limpar quando rio secar é só lavar pra tirar o lodo e tá boa de novo,
mas, os meninos vão ter que construir de novo. É triste, muito triste o que
fizeram com o nosso querido rio Madeira. Eles (usinas) dizem que não tem culpa,
eu acho que têm sim!
Zk – E a Defesa Civil?
Angélica Santos – Tá
trabalhando, mas, me negaram uma cesta básica alegando que sou aposentada,
depois se arrependeram e foram me oferecer água mineral, isso antes da cheia
invadir completamente nossa casa. Agora tô na casa da minha filha aqui em Porto
Velho.
Zk – Para encerrar essa
nossa conversa. O que a senhora tem a dizer para nossas autoridades?
Angélica Santos – Nada! Não
sei se eles tem mais força do que eu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário